quinta-feira, 21 de março de 2013


Inicia-se uma série de publicações do Jornal Pessoal de Lúcio Flávio Pinto. A exatidão de nosso estado.


De volta ao começo.

Mais de um ano depois de começar, a obra da hidrelétrica do Xingu foi paralisada. A justiça reconhece sua inconstitucionalidade. A partir de agora, tudo será desfeito ou prevalecerá o fato consumado?


As obras da hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, no Pará, foram suspensas pela terceira vez desde que foram iniciadas, pouco mais de um ano atrás. As duas primeiras, parciais e rápidas, foram causadas diretamente pelos movimentos sociais, à frente deles os índios. Agora, no dia 23 de agosto, por uma iniciativa do Ministério Público Federal, que tem sido o maior defensor dos que não querem a construção da usina.
A 5ª turma do Tribunal Federal da 1ª Região, com sede em Brasília, não só acolheu (oito dias antes da intimação da sua decisão chegar a Altamira) os embargos de declaração do MPF como lhes deu efeitos maiores do que os pedidos.
Os desembargadores federais modificaram os efeitos de uma decisão anterior, que autorizara a retomada dos trabalhos, questionados desde a fase de estudos prévios, há uma década.  A suspensão tinha que ser imediata e seu descumprimento acarretaria ao transgressor multa diária de 500 mil reais. Na noite do dia 27, atendendo a uma reclamação da Advocacia Geral da União, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Carlos Ayres de Britto, suspendeu os efeitos do acórdão do TRF-1, e as obras foram retomadas.
Em 2005 o Congresso Nacional autorizou a execução do EIA-Rima (Estudo de Impacto Ambiental-Relatório de Impacto Ambiental) e da própria obra, com base numa declaração do governo federal de que Belo Monte, concebida para ser a terceira maior hidrelétrica do mundo, era obra estratégica para o país.
A partir daí foram adotadas todas as providências para dar andamento à execução dos serviços e no ano passado foi montado o canteiro de obras. Uma decisão isolada de um ministro do Supremo Tribunal Federal, declarando a constitucionalidade da obra, parecia ter afastado as últimas barreiras no caminho do empreendimento. Como esse despacho não foi referendado pelo colegiado, não representou a palavra final do STF.
A corte vai ter que novamente se pronunciar sobre a questão por causa da decisão da turma do TRF-1. Os desembargadores, à unanimidade, concluíram que não foram atendidas duas exigências constitucionais, que também integram tratado internacional do qual o Brasil é signatário: a audiência às populações indígenas tem que ser anterior à autorização da obra e só pode ser feita pelo próprio Congresso, que não pode delegar essa competência a terceiros, seja o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente) ou a Funai (Fundação Nacional do Índio). Ou seja; o licenciamento tem que retornar ao ponto de origem.
Trata-se de uma formalidade diante de fatos já constituídos, mas essa é uma formalidade essencial, segundo o entendimento dos desembargadores. Não é liberalidade programática nem está no âmbito do poder discricionário do executivo. Ou uma representação dos índios irá a Brasília ou os congressistas terão que percorrer as aldeias do Xingu afetadas pela obra.
Essa nova consulta não deverá dar resultado diverso do que já foi apresentado durante as numerosas audiências organizadas ou em manifestações espontâneas: a maioria dos índios é contra Belo Monte.
Por isso o projeto se inviabilizará? Não: a consulta, como o próprio nome diz, não tem efeito deliberativo. Mesmo informado de que a população mais antiga da região não quer a usina, o Congresso pode aprová-la, desde que faça cumprir as medidas de proteção e compensação previstas em lei para os nativos indígenas (a cobertura não chega aos caboclos, já miscigenados, embora eles vivam em situação quase igual - ou às vezes pior - do que os próprios índios).
O presidente do Supremo Tribunal Federal suspendeu a decisão do colegiado do TRF-1 e liberou novamente as obras, conforme tem sido a trajetória dessa intensa guerra judicial. Mas as claras lacunas deixadas em aberto pela decisão precipitada que o Congresso adotou em 2005 precisarão ser enfrentadas. Esse açodamento, que tem sido uma das marcas das grandes hidrelétricas que o governo quer construir na Amazônia, deixará danos e prejuízos pelo caminho.
As obras de Belo Monte começaram em junho do ano passado. A Norte Energia, empresa responsável pelo projeto, diz que foram investidos até agora cinco bilhões de reais. Esse valor representa quase três vezes mais do que os recursos que o governo do Estado do Pará pretende usar no seu Programa de Investimentos Prioritários ao longo dos próximos três anos (2012-2014), cobrindo um território com 1,2 milhão de quilômetros quadrados e quase oito milhões de habitantes.
Os R$ 5 bilhões já gastos na obra são 20% do orçamento da hidrelétrica, que é de R$ 26 bilhões, até a usina entrar em funcionamento, em 2015. Mesmo nesse estágio, porém, caso não prossiga mais a sua implantação, já seria um dos maiores projetos de infraestrutura realizados no Brasil atualmente.
Sem ordem judicial, Belo Monte foi paralisada por duas vezes pelos movimentos sociais, os índios à frente. Um mês do cronograma oficial foi comprometido, atrasando o que o consórcio pretendia fazer; Dos 39% previstos de infraestrutura, a execução foi de 25%; 2% dos 9% de canais; nada nos diques e no sítio Pimental. Apenas o sítio Belo Monte está adiantado (4% em relação aos 5% previstos). Nenhuma manifestação de protesto o atingiu.
Esse cronograma mostra os efeitos da trajetória litigiosa da obra. Mas também revela a fragilidade do seu orçamento: com esse nível baixo de execução física, para a aplicação de 20% de todo o orçamento, é bem provável que os R$ 26 bilhões sejam amplamente superados.
Se a ordem de paralisação for em definitivo ou de novo temporariamente, o efeito da medida poderá ser medido por bem mais do que os R$ 500 mil da multa diária por descumprimento da ordem judicial (o consórcio construtor diz que o prejuízo é de 12 milhões de reais por dia). Mas se a decisão exigir a reversão da obra ao estado anterior, apagando-se todas as marcas abertas na natureza e na sociedade local para que as enormes estruturas de concreto e ferro se transformassem numa hidrelétrica de 11,3 mil megawatts, capaz de atender a 40% do consumo nacional de energia?
O Movimento Xingu Vivo, com sede em Altamira, que tem sido o maior antagonista da obra, apresentou em uma nota o seu entendimento sobre a decisão. Argumentou que, como o decreto “que ilegalmente autorizou as obras de Belo Monte foi anulado, e junto com ele as licenças prévia e de instalação”, deverão ser encaminhadas “medidas emergenciais de reversão dos principais impactos sobre as populações afetadas e o meio ambiente”. Elas seriam:
- destruição das três ensecadeiras (barragens provisórias) já construídas no Xingu e restauração do livre fluxo do rio e de sua navegabilidade.
- recomposição da mata nativa dos 238 hectares desmatados para a construção de canteiros da usina e das demais áreas degradadas pelas obras, como os igarapés do Paquiçamba.
- restituição das áreas de pequenos agricultores compulsoriamente desapropriadas.
- recomposição dos plantios de culturas, principalmente de cacau, das áreas desapropriadas.
- restituição das áreas e reconstrução das casas de ribeirinhos compulsoriamente desapropriadas e demolidas, como as da Vila de Santo Antonio.
- indenização das comunidades rurais, ribeirinhas, indígenas e de pescadores por danos econômicos, morais, ambientais e culturais.
O atendimento dessas providências equivaleria a um flash-back real: o que foi feito teria que ser desfeito. Depois do dinheiro gasto para fazer, seria preciso gastar para refazer. Com um agravante nessa destruição/reconstituição: o rio Xingu vai continuar a vazar por mais dois meses e depois voltará ao período de cheia de seis meses. A descontinuidade vai acarretar efeitos ainda mais limitadores para quem for trabalhar na obra, seja construindo como desconstruindo.
A situação é grave por vários fatores. Não há dúvida que o Congresso Nacional atropelou a constituição quando, em 2005, autorizou o início do licenciamento ambiental da obra, simultaneamente à liberação para a sua construção, sem ouvir previamente as comunidades indígenas da região. A audiência tinha que anteceder o decreto legislativo.
Já se sabe que, a favor ou contra a usina, não há unanimidade entre os índios. A maioria é contra, mas alguns seguiram o exemplo de Luís Xipaya e ficaram do lado de Belo Monte. Mesmo que todos fossem contrários, sua manifestação é apenas informativa. O parlamento decide soberanamente.
A consulta torna-se mera formalidade, embora de cumprimento obrigatório, o que não aconteceu. Mas a maioria dos parlamentares é a favor da hidrelétrica, o que garantiria sua aprovação de novo. Mas depois de muito tempo de paralisação. O atraso poderia chegar a um ano, segundo os construtores.
A Norte Energia jura que nenhuma terra indígena será atingida diretamente por Belo Monte e que o único prejuízo, a diminuição do fluxo de água a jusante (abaixo) da barragem, será sanado por um sistema de transposição de embarcações, já previsto, e o fornecimento alternativo de água.
Garante ainda que cumpriu tudo que lhe foi imposto pelo governo e está perfeitamente dentro da lei. Ouviu os índios em 38 reuniões  em  24 aldeias. Sofre por tabela uma decisão que visou os órgãos oficiais, como a Eletrobrás, a Eletronorte, o Ibama e a Funai, responsáveis pelo licenciamento da obra. Ameaçou claramente responsabilizar quem der causa aos prejuízos, se vencer na justiça.
De fato, o sujeito oculto nessa oração conturbada é o governo. É ele que tem o controle acionário da empresa concessionária, é ele que se comprometeu a garantir 80% do custo da usina, através do BNDES. e é ele que exerce o controle sobre a obra em nome do interesse público. Mas esconde a mão quando atira a pedra.
Cinco bilhões de reais depois, Belo Monte é o maior exemplo no Brasil de hoje da dissociação entre os fatos consumados e a lei. Entre a grandiosidade da obra e a responsabilidade que ela impõe, mas que não parece nortear as ações no belo e maltratado rio Xingu. Talvez o que está acontecendo em Belo Monte sirva de alerta para quem quer continuar a impor sua vontade contra as regras da lei.
Acessado em:http://www.lucioflaviopinto.com.br/ No dia 21/03/2013

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